Mídia A eficácia das varas judiciais especializadas em direito empresarial: Uma breve análise do modelo das cortes de Delaware, EUA.

Marcelo Soares Vianna- Espaço Jurídico Bovespa – Ago/2009.

Há muito discute-se as vantagens da criação de varas especializadas em direito empresarial como forma de obter maior eficácia na prestação jurisdicional, adequando-se o sistema judiciário brasileiro às atuais necessidades do mundo corporativo. Um bom exemplo a ser analisado nesse sentido são as cortes de Delaware nos Estados Unidos. Em razão da expertise em direito empresarial de seus magistrados, em especial no que se refere a disputas envolvendo companhias abertas (em geral em matéria de fusões e aquisições e de conflitos entre acionistas e diretores), Delaware tem apresentado resultados surpreendentes em termos de eficácia na prestação jurisdicional.

Nada obstante ser o segundo menor estado norte-americano, com apenas 873 mil habitantes , Delaware é mundialmente reconhecido como “Corporate Capital of the Word”, incorporando atualmente mais de 60% das “Fortune 500” empresas dos EUA e mais da metade das companhias cotadas na bolsa de valores de NY e NASDAQ , que em Delaware se instalaram em razão do ambiente extremamente favorável ao desenvolvimento da atividade empresarial, em especial a partir da eficácia de seu poder judiciário.

No primeiro grau de jurisdição de Delaware, as decisões mais relevantes em matéria de direito corporativo originam-se da ”Court of Chancery”. Individualmente, seus apenas 5 magistrados não raramente decidem questões extremamente complexas (envolvendo milhões ou mesmo bilhões de dólares) em menos de 60 dias. Contudo, em que pese a celeridade de seu trabalho, as decisões dos juizes da “Court of Chancery”, pautadas na aplicação balanceada e imparcial de apurados princípios de direito corporativo, são tão qualificadas e respeitadas que dificilmente encontram reforma em segundo grau de jurisdição. No último ano fiscal (julho/2007 – junho/2008), somente 17,7% das apelações provenientes da “Court of Chancery” foram providas (total ou parcialmente) pela “Supreme Court of Delaware” , órgão máximo do poder judiciário do estado e que representa o segundo grau de jurisdição em matéria corporativa.

A “Supreme Court of Delaware”, também composta por apenas 5 magistrados, decide (via de regra em grupo de 3 juízes) a maioria dos casos por decisão unânime. Nos últimos 55 anos, 99% dos casos foram decididos por unanimidade, prática caracterizada como “Delaware’s unanimity norm“. Em termos de celeridade, o segundo grau de jurisdição de Delaware apresenta resultados ainda mais surpreendentes. De acordo com o regulamento interno da corte, os casos devem ser obrigatoriamente decididos em até 90 dias contados da data em que submetidos à análise da corte, sendo que a média alcançada na prática tem sido substancialmente inferior. No último ano fiscal, por exemplo, os processos foram julgados em média em apenas 39,6 dias. .

A celeridade dos magistrados de Delaware na análise dos casos a eles submetidos, assim como a otimização dos procedimentos administrativos observados por suas respectivas cortes, resulta em um tempo total de trâmite processual de 18 meses em média. Portanto, comparando-se à notória morosidade do Poder Judiciário brasileiro (onde o trâmite processual de uma ação judicial pode despender mais de 10 anos) a eficácia das cortes de Delaware fica mais que evidente.

Conforme último relatório do Conselho Nacional de Justiça, a taxa média de congestionamento (percentual de ações pendentes de decisões terminativas em face do número total de ações submetidas aos julgadores ao longo do ano) no Brasil foi de 79,6% no primeiro grau e de 42,5% no segundo grau. Em Delaware, a aplicação do mesmo índice alcançou somente 3% na “Court of Chancery” e 0,9% na “Supreme Court”. Ou seja, no último ano fiscal, a “Supreme Court of Delaware” julgou 99,1% de seus casos, restando pendente um congestionamento de apenas 0,9% do total de processos submetidos aos seus 5 juizes ao longo do ano.

Por certo que a análise de tais resultados deve ser feita levando-se em consideração as peculiaridades do poder judiciário de Delaware. Além de estar inserido em um sistema jurídico em muito diferente do brasileiro (baseado na “common law” britânica), o fato de a legislação societária norte-americana ser em grande parte estadual restringe a possibilidade de recursos à Suprema Corte dos Estados Unidos, fazendo com que os processos via de regra sejam encerrados imediatamente após a decisão de segundo grau (suprema corte dos estados federados), o que por óbvio reduz significativamente o tempo total de trâmite processual. Outro aspecto importantíssimo é que os magistrados de Delaware têm uma demanda de processos em muito inferior àquela suportada pelos juízes brasileiros.

Veja-se nesse sentido que a carga de trabalho (divisão do número total de demandas pelo número de juízes) dos magistrados brasileiros em 2008 alcançou em média 5.277 processos por magistrado no primeiro grau (em São Paulo, foram 10.612 processos por juiz) e 2.066 no segundo grau (no Rio Grande do Sul, foram 3.539 processos por desembargador). Em Delaware, os juízes da “Court of Chancery” tiveram sob sua responsabilidade individual no último ano fiscal 920 processos, enquanto os magistrados da “Supreme Court”, somente 134 casos por juiz. Há, portanto, uma substancial diferença no volume individual de trabalho dos magistrados, o que sem sombra de dúvida justifica (pelo menos parcialmente) a diferença nos resultados alcançados.

Contudo, as peculiaridades de cada sistema jurídico e o volume de trabalho não devem ser os únicos fatores a serem levados em consideração na análise da eficácia na prestação jurisdicional. A especialização e o consequente preparo dos julgadores também tem forte influência na eficácia das cortes de Delaware, permitindo maior qualidade, celeridade e previsibilidade em suas decisões.

Não é difícil concluir que a segmentação da matéria analisada acarreta maior familiaridade com o tema apreciado e por conseguinte ganho de qualidade na decisão proferida. A especialização permite ao julgador uma análise mais apurada e sobretudo mais ampla na formação de seu entendimento, que tende a considerar com maior ênfase outros aspectos envolvidos na devida prestação jurisdicional, como por exemplo o futuro impacto macro-econômico decorrente de suas decisões.

Da mesma forma, a especialização facilita a gestão administrativa da vara judicial, viabilizando maior otimização dos procedimentos observados (que acabam se tornando menos diversificados) com o consequente aperfeiçoamento e celeridade na prestação jurisdicional.

Já a previsibilidade das decisões é uma consequência natural da especialização, na medida em que haverá menor pluralidade nos julgamentos a partir da maior afinidade e alinhamento entre o entendimento dos juizes especializados.
A soma de todos estes fatores – qualidade, celeridade e previsibilidade nas decisões judiciais – viabiliza um ambiente propício a atividade empresarial e consequentemente fomenta o desenvolvimento econômico do estado de Delaware e dos EUA como um todo.

Contudo, a especialização de Delaware para atender à demanda da atividade empresarial não se traduz em um judiciário parcial, favorável ao empresariado, mas sim em decisões judiciais que analisam os temas discutidos (i) com a devida expertise, profundidade e imparcialidade, (ii) dentro de um prazo razoável capaz de acompanhar o dinamismo do mundo dos negócios e (iii) que, via de regra, permitem um mínimo de previsibilidade acerca de seu conteúdo, seja ele favorável ou não à empresa. É fundamental que se possibilite ao jurisdicionado a mínima segurança jurídica para a prévia tomada de decisão de forma a evitar, na medida do possível, o conflito judicial; um dos maiores entraves ao fomento da atividade empresarial.

Ressalte-se também que a especialização do judiciário em Delaware não inviabilizou a solução de conflitos corporativos mediante outros meios alternativos, como a arbitragem por exemplo. Porém, a expertise dos juízes de Delaware permitiu ganho de eficácia sem agregar qualquer custo extra ao jurisdicionado nem tampouco, e mais importante, abrir espaço para eventual questionamento acerca da validade do procedimento alternativo previamente escolhido pelas partes, hipótese infelizmente ainda frequente nos procedimentos de arbitragem no Brasil.

Verdade seja dita que as varas especializadas em direito empresarial não são novidade no Poder Judiciário brasileiro. O estado do Rio de Janeiro por exemplo já possui varas empresariais desde 2001 e, portanto, já pôde comprovar na prática alguns bons resultados daí decorrentes, razão pela qual, quando legalmente possível, o foro fluminense tem sido frenquentemente eleito por empresas instaladas em outros estados para resolução de eventuais conflitos judiciais. Também os estados de Minas Gerais e Goiás já criaram varas judiciais especializadas em direito empresarial. O estado de São Paulo já discute o assunto há alguns anos, encontrando todavia obstáculos no grande volume de processos envolvendo matéria empresarial, o que exige uma dispendiosa e, ao que tudo indica, lenta adaptação e redimensionamento da estrutura então existente.

A realidade do judiciário paulista, portanto, sinaliza que a implementação de varas empresariais deve ser um processo cauteloso e, quando necessário, gradativo, observando-se para tanto as particularidades de cada judiciário.
A especialização das cortes de Delaware não foi construída por força de lei nem tampouco em curto prazo, mas sim ao longo de anos de experiência de seus magistrados que pouco a pouco foram se familiarizando com o ambiente corporativo e, por consequência, sendo reconhecidos como especialistas na matéria. Outros estados americanos (como Nova York, Pensilvânia, Ilinois, Carolina do Norte, dentre outros), apesar de já terem conseguido resultados bastante positivos a partir da criação de cortes empresariais nos últimos 15 anos , ainda não alcançaram o grau de excelência e projeção das cortes de Delaware.

Contudo, tratando-se de um processo gradativo ou não, a verdade é que a criação de varas judiciais especializadas em direito empresarial é uma tendência que atualmente alcança projeção em nível internacional, razão pela qual vários paises, como Japão, China, Taiwan, Alemanha, dentre outros, têm buscado inspiração no sistema e nas leis de Delaware para implementar um judiciário mais acessível e adaptado às necessidades do mundo corporativo e, dessa forma, atrair mais investimentos.

Portanto, considerando-se o corrente empenho do Poder Judiciário brasileiro em busca de maior eficácia na prestação jurisdicional, o sistema de Delaware sem sombra de dúvida representa um modelo que, a partir de seus excelentes resultados, merece no mínimo uma atenta e profunda análise.

Marcelo Soares Vianna
marcelo@veof.com.br

Espaço Jurídico Bovespa – Ago/2009.

As informações e estatísticas apresentadas no presente artigo, no que se refere ao poder judiciário de Delaware, foram obtidas e/ou confirmadas pessoalmente pelo autor junto à “Court of Chancery” e à “Supreme Court of Delaware”, em trabalho realizado ao longo do período de maio a junho de 2009.
http://www.census.gov/popest/states/tables/NST-EST2008-01.csv
REED, John L. Mergers & Acquisitions: A Practical Global Guide. London: Global Business Publish Ltd. 2007, p. 400.
SIMMONS, Omari Scott. Branding the Small Wonder: Delaware’s Dominance and the Market for Corporate Law. 2008, p. 42.
Informação obtida diretamente junto ao Poder Judiciário de Delaware.
HOLLAND, Randy J. and SKEEL, David A. Deciding cases without controversy. Delaware Supreme Court Golden Anniversary. Wilmington: Supreme Court of the state of Delaware. 2001, p. 40-41.
http://courts.delaware.gov/AOC/Annual%20Reports/FY08/?SupremePerfSummary-ElapsedTime.pdf
Informação obtida diretamente junto ao Poder Judiciário de Delaware.
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf
http://courts.delaware.gov/AOC/Annual%20Reports/FY08/?2008Statistical.pdf
WOLFE JR, Donald J. e POTTENGER, Michael A. Corporate and Commercial Practice in the Delaware Court of Chancery. Vol. I. 2005, p. 1-7.
PARSONS Donald. F. e SPLISHTS, Joseph R.. Business Law Today. The history of Delaware’s Business Courts. Março/abril 2008, p. 21.

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